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Krítica de Escritos de Vagner sobre último trabalho de Gerald Thomas!

escritosdevagner

‘FETO’ – Um Banquete Estético no Meio da Desordem do Mundo!

‘F.E.T.O’  montagem em cartaz no Sesc Consolação é uma das melhores encenações de Gerald Thomaz, senão a melhor. Afinado com a sua sensibilidade, conhecimento e autoconhecimento,o artista, que sabe zombar de si mesmo, está em acords com o próprio caos e com o coração que quer abarcar o vasto mundo que aqui e ali explode em guerras. E ‘F.E.T.O’ pede paz entre mortos e os escombros dos tempos surdos e caóticos. 

A encenação tem a exuberância da ópera e a contenção do Teatro Nô que impõe a sua força ritualística dentro de uma peça que o explora o simulacro, a artificialidade, onde a verdade brota das profundezas do pântano do inconsciente, o mesmo que gera belezas como esta obra. Nelson Rodrigues também extraiu beleza da tragédia humana e das próprias memórias em ‘A Menina Sem Estrela’, portanto Gerald Thomaz é…

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Estou feliz em comentar o documentário sobre Putin.

Érica Telles na Pedalada Pelada (Salvador – 2016). Na Câmara dos Deputados (Brasília – 2016), durante discussão para alteração do Código de Trânsito, no Fórum Mundial da Bicicleta (Chile – 2016) e na Massa Crítica (Salvador – 2011).

Érica Telles é publicitária, produtora cultural e ativista pela mobilidade ativa por bicicleta. A bike é uma velha companheira, mas foi em 2011 que ela começou a atuar como ativista. Participou de diversos movimentos importantes em Salvador e atualmente é coordenadora do Observatório da Mobilidade de Salvador. Nesta entrevista, concedida no âmbito da minha tese de doutorado, Érica fala sobre seu percurso na mobilidade e aponta os erros dos gestores públicos quando o assunto é mobilidade. Falta participação pública na tomada de decisões e falta o olhar de quem realmente está usando a estrutura na cidade: “Pedalar em Salvador é um ato de resistência. Não tenho dúvida. Falo de um lugar de privilégio, mas, mesmo assim, como ciclista, sei que diante de um automóvel sou invisibilizada e menosprezada”. Leia a entrevista completa:

Marcelo de Trói: Como a questão da mobilidade chega na sua vida e por quê?

Érica Telles: Eu sempre gostei muito de pedalar. Desde criança é uma ferramenta, um veículo que me acompanha no meu processo de crescimento e formação física. Mas interrompo essa relação por volta dos 15 anos. Retomo quando vou morar no Rio de Janeiro por motivo de trabalho, em 2001. Eu me encontrei de novo com a bicicleta e comecei a pedalar pela cidade, fazendo pequenos percursos aos finais de semana. Ir a praia, encontrar uma amiga. Ou seja, uma coisa mais na modalidade passeio, lazer. Em 2002, quando eu retorno para Salvador, eu interrompo de novo o contato com a bicicleta e só retomo muitos anos depois. Em 2011, reencontro pessoas no meio artístico, na cena cultural que estavam pedalando, usando a bicicleta como ferramenta de deslocamento e falavam: “Vem pedalar com a gente, vem pedalar um dia desses”. E eu falava: “Acho que eu nem lembro mais como é pedalar”. Eu fui e foi uma pedalada chamada Meninas ao Vento, o primeiro grupo que participei. A proposta era empoderar mulheres através da bicicleta, independente de que forma você gostaria de estar usando a bicicleta, se fosse para o seu lazer, se fosse para o trabalho. O nome do movimento era Meninas ao Vento Tropical Cycle Chic porque ele saia dessa configuração de ciclista com roupa de ciclista. Era para as mulheres pedalarem de salto, de roupas arrumadas ou com roupas de passeio, dar uma quebrada nessa convenção de que ciclista só pode andar de um jeito. E foi muito legal. A gente formou um grupo muito bacana, com muitas mulheres, eu lembro que a gente começou a despertar o desejo de mulheres querendo participar. Fazíamos nossos passeios noturnos pelas ruas de Salvador, sozinhas, a ideia era fazer passeios culturais: “Vamos comer sanduíche de pernil no Líder”, por exemplo. A gente falava sobre o feminismo e questões relacionadas a esse universo do gênero que tava pautado em nossas vidas, no nosso cotidiano. Houve, para variar, como todo grupo que é formado por gente, discussões, confusões e com isso houve uma quebra dessa rotina. No mesmo tempo que eu começo com Meninas ao Vento, eu sou apresentada à Massa Crítica – Bicicletada Massa Crítica Salvador que é um movimento que acontecia desde 2010 (se não me engano) e há muito mais tempo em outras cidades do Brasil. É a Massa Crítica formada em São Francisco, nos Estados Unidos, que fui descobrindo e entendendo qual era a intenção da Massa Crítica. Um movimento sem líderes, com uma perspectiva anárquica no sentido de não ter lideranças e de ser criado na hora, uma perspectiva popular de defender o direito ao acesso à rua, o partilhamento seguro pela bicicleta. Isso foi me comovendo, me envolvendo. Eu sou uma pessoa de paixões e eu sempre fui uma pessoa apaixonada pela bicicleta. E eu retomei essa paixão nesse momento, por várias coisas que estavam acontecendo. Depois disso, a gente vai caminhando e conhecendo as frentes, grupos, coletivos e organizações que trabalham essa perspectiva. Até eu chegar no Mobilidade Salvador, o coletivo formado dentro desse núcleo da Bicicletada Massa Crítica Salvador e conectado com os outros coletivos do Brasil como a UCB – União de Ciclistas do Brasil. Eu entrei na UCB em 2015. Lá, eu comecei trabalhar nos grupos de trabalho que era mais próxima como o grupo de comunicação e de políticas públicas. Temas que gosto muito. Virei conselheira da UCB em 2016 e em 2017, eu fui eleita diretora administrativa. Exerci o mandato de 2 anos, 2017-2019, foi um mandato importante, considero que participei de um legado muito legal, principalmente de dois projetos muito marcantes da organização que é a implementação do Observatório da Bicicleta e o Projeto de Incidência Legislativa que é quando a UCB começa a fazer um monitoramento nas Câmara de Deputados e Senado Federal, nas casas legislativas, sobre projetos de lei relacionados à bicicleta. Então em 2018, a gente consegue sancionar um projeto bem importante que é o Projeto Bicicleta Brasil que fala sobre esse reconhecimento da bicicleta, a importância do modal na perspectiva de saúde e bem estar social. É um programa que destaca a bicicleta à categoria de veículo de baixo carbono e sustentável, reconhecido pela ONU – Organização das Nações Unidas e que deve ser valorizado, promovido e estimulado. Agora a gente está em outra etapa, entreguei a gestão, estou como conselheira de novo da UCB na parte de comunicação. Nesse caminho, acabei entrando no Coletivo Mobicidade Salvador que existe desde 2012 e acompanhou muitos projetos locais: PDDU, Plano de Mobilidade da cidade, o desmonte do trem, o avanço do monotrilho, toda uma crise do transporte coletivo… Falar de mobilidade ativa não nos exclui de perceber a importância e necessidade do transporte coletivo. Pessoas que pedalam e caminham, em algum momento vão usar transporte público coletivo. Então, existe essa questão da intermodalidade que é muito importante: fazer com que a bicicleta seja aceita nesses espaços, seja bem recebida. Quem usa a bicicleta precisa ser bem recebido nesses lugares (estações de trem, metrô e de ônibus, além de prédios públicos e comerciais). Isso é fundamental para gente e por isso dialogamos muito com essa pauta que é muito transversal. A gente acompanhou todo esse processo de crise e decadência do transporte coletivo no Brasil nos últimos quatro anos. Temos visto uma depreciação cada vez mais acentuada do processo. E aí dentro dessa conjunção de pautas, conhecendo gente, com pautas similares, por mais que uma pessoa defenda a pauta do transporte coletivo e você da mobilidade ativa pela bicicleta, aí você conhece uma pessoa com a pauta da mobilidade ativa pé, e aí você pensa: porque a gente não se junta. Assim surgiu o Observatório da Mobilidade de Salvador, juntando pessoas que queriam dialogar sob a perspectiva da mobilidade urbana, e questionar a vontade política dos gestores municipais e a ausência de medidas para melhorar este setor do direito à cidade, e que a gente não via nem espaços, nem vontade política de se debater. É um projeto local.

MT: E como ele funciona? Tem CNPJ? Como vocês estão estruturados?

ET: O Observatório surge dessa demanda. No meio da pandemia a gente fez o “Manifesto por Mobilidade Urbana Inclusiva, Segura e Sustentável”. Foi nossa primeira ação conjunta e coletiva. A gente entregou em todos os órgãos executivos de Salvador: Secretaria de Mobilidade Urbana, gabinete do prefeito e Transalvador. Nos reunimos e decidimos criar o Observatório. Surgiu uma oportunidade de um edital no Ministério Público do Estado da Bahia que aportou pequenos valores para organizações ou pessoas que estivessem com intenção de boas práticas de algumas vertentes de eixos dentro do direito urbanístico. E a gente se encaixava pela mobilidade urbana. Nos inscrevemos (através de Daniel Caribé) e fomos contemplados. Recebemos uma verba, que foi cortada pela metade, e estamos com esse projeto que é financiado pelo MP até novembro de 2021. Tivemos o dinheiro para montar o site, criar a identidade visual, organizar, fazer vídeo de apresentação com as pessoas, congregar pessoas. Somos 16 pessoas, equilibradas entre homens e mulheres. Não tem muitos coletivos que abordam com mobilidade em Salvador. Existe o Mobicidade, que faço ainda parte com Pablo Vieira Florentino e Marcella Marconi, mas está desarticulado.

MT: E imagino que no caso da UCB, por exemplo, deve ser difícil agir localmente sendo uma representação nacional, não é?

ET: Sim. A UCB tem projetos que ela articula localmente, a exemplo do projeto das eleições que acontecem desde 2016. Qual é o processo? Faz-se uma chamada pública, todas as cidades que querem participar se inscrevem nessa chamada e a UCB faz uma assessoria de como o coletivo ou organização da sociedade civil pode incidir nas campanhas eleitorais para que pleiteiem pautas da mobilidade, e as candidaturas acolham essas pautas. Isso é muito legal. A gente não trabalha com partidos. Como a gente trabalha pelo viés da sociedade civil, nós temos a obrigação de falar com todo mundo. É uma diretriz básica desse projeto da eleição, é uma campanha suprapartidária. Se você enviar uma carta compromisso para um candidato e tem dez candidatos, você tem que mandar para os dez. Porque você se exime da culpa de dizerem: “Ah, mas fulano não recebeu”. Não, fulano recebeu mas não quis pautar, não quis conversar com as pessoas sobre esse assunto, mas sicrano falou. E assim você segue falando com todas as frentes.

MT: Agora, no Observatório, você é a diretora?

ET: Eu assino a coordenação.

MT: E vocês têm uma meta, um objetivo, um escopo bem definido?

ET: O objetivo é trabalhar com políticas públicas que melhorem a perspectiva da mobilidade dentro da região de Salvador. A gente sabe que em Salvador essa política é caótica. A gente vai ter muito trabalho no sentido de conseguir mobilização. Estamos vivendo um período de plena desarticulação.

MT: A prefeitura está aberta para esse diálogo?

ET: Não. A prefeitura não está aberta. A prefeitura de Salvador é muito esperta. Ela trabalha com quem joga com ela. Por exemplo, se nós fôssemos um coletivo que pautasse e valorizasse sem fazer críticas construtivas ao processo, eles com certeza nos chamariam. Mas a gente critica o processo da mobilidade urbana de Salvador, avaliando numa perspectiva executiva, é um projeto viciado, de muitos anos, principalmente quando você fala de transporte coletivo. Não existe transparência, é uma prefeitura que não trabalha com dados abertos de uma forma ampla. Se você for buscar esses dados dentro dos sites, das plataformas, você encontra pouco subsídio para trabalhar.

MT: E em relação ao modo ativo?

ET: A todos os modos. E eu não falo só no eixo mobilidade, falo dos outros eixos também. Se você quiser pesquisar coisas de resíduo ou mesmo outros temas, eles têm uma coisa pra tapear, mas, não é aprofundado como em São Paulo, por exemplo, que os dados são abertos.

MT: E no caso das reformas do Plano de Mobilidade? Das reformas do Centro Antigo, desse anúncio de ampliação de ciclovias na cidade, como você vê essas iniciativas?

ET: São duas questões. A prefeitura é muito marqueteira. Eles gostam muito de fazer foto bonita e postagem legal pra viralizar e, enquanto comunicóloga, eu reconheço, eles fazem isso muito bem mesmo. Eu lembro que no processo do “Não ao BRT”, eles lançaram uma campanha incrível que desestruturou o movimento. Porque as pessoas, a grande opinião pública, quando viu aquilo, pensou: “Nossa! A prefeitura está trabalhando, porque vocês estão reclamando?”. Aí você pensa: “Que merda. Como eu vou explicar isso pro cara do Uber que está me perguntando sobre isso, que eu estou levando uma faixa NÃO AO BRT para ir encontrar o pessoal”. São nessas coisas que você vê que essa sensibilização chega muito bem pra opinião pública, pra grande massa. Mas quando você olha a fundo, quando reflete a política, se ela foi feita com consulta pública, ela não foi. Não existe. Outra coisa que não tem: o acompanhamento de implantação da política. A consulta pública não é só bacana porque está prevista no Estatuto da Cidade ou por conta de A ou B, é porque quem constrói ciclovia, geralmente, não pedala. Quem faz uma ciclofaixa não tem a mínima noção de que ela não pode botar uma ciclofaixa colada no estacionamento porque a pessoa vai abrir a porta e te arremessar a metros de distância numa altura. Essas pessoas não têm noção do que elas estão fazendo. É muito fácil dizer: “Fizemos 300 km de malha cicloviárias”, mas desses 300 km quantos são espaços efetivamente seguros?!. A ciclovia e a ciclofaixa existem para dar segurança pra quem usa a bicicleta e não pra você expor mais a pessoa que usa.

MT: Esse lance do acompanhamento da política pública é muito importante, contabilizar quantas pessoas estão passando ali, até pra auxiliar o redirecionamento da política. E isso não tem, não é?

ET: Não tem. Eu já falei com a galera do Observatório da Mobilidade que no primeiro semestre de 2022, eu gostaria de fazer uma vistoria das ciclovias e ciclofaixas. A gente já tem a cessão de uma metodologia, elaborada pela Ameciclo (Recife-PE), e quero aplicar essa metodologia aqui. Não vai dar pra fazer 300 km porque é muita coisa e a gente precisaria de muitos voluntários para dar conta disso tudo, mas eu quero, pelo menos, escolher alguns trechos, por exemplo, Cidade Baixa, 5 km, 6 km, e faz esse trecho. Itapuã, vamos fazer um trecho. Pituba, faz um trecho. Área do Centro, outro trecho. Porque aí nós teremos um parâmetro, inclusive porque a qualidade de uma ciclovia na Pituba é diferente da qualidade de uma ciclovia em Itapuã. A qualidade de tinta, o próprio serviço que é feito. Eu passei um dia na ciclofaixa indo para o Bonfim, voltando por Água de Meninos e passando em frente da feira de São Joaquim, é um erro de projeto grotesco. É um negócio que você vê que a pessoa colocou a ciclofaixa na pista da esquerda, sem sinalização noturna, sem olho de gato, nem um bastidor que separe a pista. A pessoa que passar ali a noite, se ela não estiver bem iluminada, ela vai ser atropelada num piscar de olhos já que a pista da esquerda é a pista de maior velocidade. E ainda tem um trecho mal sinalizado. Se não me engano, em uma pista de 60 km por hora, o que já é uma atrocidade. Uma ciclofaixa numa via de 60 km? Você tem que colocar uma ciclovia, fechada, segregada. Os caras vão dizer o quê? Se eu não pedalo ali, se eu pedalo do bordo direito, a faixa mais lenta e se acontecer algo comigo, eu ainda sou a culpada. Porque, obviamente, o Código de Trânsito Brasileiro diz que se houver uma infraestrutura, nós temos que usar a infraestrutura. E foi uma das coisas que quiseram alegar na morte de Marina Harkot: “Mas porque ela não estava na ciclovia se a avenida Sumaré tem ciclovia?”. Então, é isso que as pessoas não entendem. De que adianta ter uma ciclovia na casa do caralho, deixar a pessoa confinada…sujeita a algum tipo de violência física, principalmente para nós mulheres… Quando você voltar a Salvador, tente passar no trecho do BRT. Eles pegaram o BRT e fizeram na pista central da Avenida ACM, aí eles disseram na época da campanha, há três anos, que ia ter 12 km de ciclovia, como se fosse uma grande compensação. Eu ri quando vi o projeto e ri no dia que passei e vi ao vivo. As pistas dos ônibus são elevadas, eles fizeram os viadutos. A ciclovia é lá embaixo. Historicamente é uma área que alaga, você está confinado, porque para além do elevado e a ciclovia embaixo, ela está gradeada com dois a três metros de altura. Você acha que eu enquanto mulher vou pedalar num negócio desses, depois das 18h da noite pra ser assaltada ou estuprada? Não vou, não vai rolar. Eu participei de uma audiência sobre uma invenção do governo do estado, o PDUI – Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado. Um engôdo. Era pra ser um plano de metropolização, mas não é, não vai ser. Uma pessoa virou pra mim no dia da discussão do tema mobilidade e falou: “Ah, mas a gente precisa pensar nos modais ativos. A gente podia fazer…”. Veja bem que aí você percebe que é uma ideia de uma pessoa que nunca pedalou na vida. Eles querem colocar uma ciclovia ou ciclofaixa ali no complexo viário do aeroporto, um local cheio de viadutos, de alta velocidade. Aí a pessoa disse: “A gente podia fazer uma ciclovia ou ciclofaixa numa passarela, bota a pessoa pedalando numa passarela”. Eu disse: “Não, gente. Se vocês fizerem uma passarela, vocês vão deixar a pessoa exposta. Salvador vai virar a cidade das vias aéreas porque as pessoas acham que o certo é tirar o pedestre, quem está circulando na pista, e colocar em elevado. Porque não baixa a velocidade da região?”.

MT: Entendi qual tem sido o papel do poder público, principalmente na perspectiva do ativismo. Queria fazer umas perguntas específicas. Como enxerga o Centro Antigo de Salvador e a relação com as mobilidades? É um território com características periféricas, com várias ações de gentrificação e, ao mesmo tempo, acessibilidade para o transporte rápido se comparado com outros lugares da cidade.

ET: Existe um Centro para pessoas que têm condições de circular e estar nesse Centro, e outro, para as pessoas não estarem nesse Centro. Para quem mora no Santo Antônio Além do Carmo, que virou um território hipster, charmoso, é conveniente não ter ônibus circulando na região, rua de paralelepípedo, calçadas charmosas. A gente pode pensar no Corredor da Vitória, Campo Grande, Politeama, você vai ter referências de pessoas da classe média que de certa forma se utilizam do serviço de mobilidade e com uma demanda privilegiada (leia-se pessoas que usam transporte individual motorizado próprio ou por aplicativo) e tem outra realidade das pessoas da Saúde, Barroquinha, Baixa dos Sapateiros, pessoas que por necessidade de estar trabalhando ou morando, necessitam estar frequentemente circulando nestes espaços e se utilizam do transporte público. Recentemente, passei no Terminal Central da Barroquinha. Sabe quantas linhas tem em serviço atualmente? O Terminal está lindo, bem feito, apesar de não gostar deste modelo de abrigos de chuva, porque não protegem ninguém – para foto fica bonito. Mas só existem oito linhas funcionando. Aquele terminal já teve pelo menos o dobro disso. Agora eles querem reinventar a roda e colocar um túnel da Barroquinha até a Lapa. Para que? Salvador precisa investir dinheiro em qualificação de calçada, as pessoas caem. Tem uma quantidade de pessoas a partir dos 50 anos que caem, que tem quedas graves. E as pessoas não sabem disso. A gente precisa qualificar calçada com rampa e acessibilidade decente, não obra meia boca. A gente tem uma boa parte da população que precisa disso, pensemos nos idosos, crianças, pessoas com deficiência. Precisamos requalificar o transporte coletivo de Salvador que está ‘pegando fogo’ metaforicamente e literalmente. A gente precisa de subsídio para este serviço, que é um direito social, para que as situações de operação sejam normalizadas e assim a população possa ter acesso a um serviço de maior qualidade. A maior parte da cidade utiliza o transporte coletivo, a caminhada ou bicicleta como forma de se deslocar majoritariamente. Porque os recursos não são investidos em sua maior parte nestes meios de transporte?!

MT: Então você acredita que é uma área que tem acesso, mas que esse serviço é precarizado.

ET: Exatamente. E existem situações bordões: olha que legal, o elevador do Taboão foi reformado. Não estou dizendo que não deveria ser reformado. Acho que a mobilidade vertical é importante numa cidade que tem uma topografia específica como a nossa. Mas, o elevador do Taboão está do lado do Plano Gonçalves que está do lado do Pilar, do lado do Elevador Lacerda. Não seria mais legal a gente pensar em outra área, mais adensada que também tem necessidade de mobilidade vertical e que precisasse dessa implementação de recurso? A Vasco da Gama você tem cumeadas fortemente povoadas como o Engenho Velho de Brotas e o Engenho Velho da Federação. Porque escolher o Taboão?

MT: É o turismo?

ET: Nada contra o Pilar, as pessoas do Pilar, as pessoas do Comércio. Mas ali já tem um serviço, um atendimento. O elevador do Taboão provavelmente vai funcionar no mesmo esquema do Pilar e Gonçalves. De segunda a sexta. Desses ascensores todos, o único que funciona aos sábados, domingos e feriados é o Lacerda. Vai funcionar precariamente e ser mais um ponto turístico efetivo do que uma coisa que resolva. Sou contra? Não, mas existem lugares que precisam de serviços similares onde este recuso poderia ter sido investido..

MT: Junho de 2013 foi aquela explosão toda e, de certa forma, a questão do transporte coletivo estava na centralidade dos protestos durante o início, mesmo depois das outras pautas que foram surgindo. Até porque a mobilidade cria essa esfera social que é interseccional e agrega muitas outras pautas. Esse movimento representou alguma coisa pra você?

ET: As Jornadas de Junho de 2013 traz um misto de muitas coisas. Eu estava num processo de retomada, fora das pautas de mobilidade e trabalhando para o setor de eventos. Isso me causou muitos sentimentos controversos. Eu queria estar lá, mas eu estava trabalhando na Arena Fonte Nova. Eu entendo perfeitamente o discurso, mas acho que o movimento foi cooptado, como tudo no Brasil é. Elas deflagraram muita coisa, mas a Revolta do Buzu pra mim tem impacto maior. Eu vi aquela questão do ativismo puro, menos global que 2013. foi uma revolta autêntica.

MT: E a Revolta do Buzu é o local de invenção do MPL – Movimento Passe Livre que foi o coletivo que deflagra as Jornadas de 2013 e eu sempre penso que é muito interessante essa ligação espaço temporal.

ET: Eu nunca vou me esquecer da Revolta do Buzu no dia em que os estudantes fecharam o Terminal da Lapa e não deixaram nenhum ônibus entrar. Aquilo foi muito simbólico. É muito nosso, baiano, no sentido Independência da Bahia, uma coisa nossa e que influenciou o Brasil inteiro.

MT: 2013 começou em 2003.

ET: Isso.

MT: Salvador historicamente teve muitos conflitos, isso está na minha tese. Você tem a Greve dos Ganhadores, que considero um movimento ligado à mobilidade sendo o primeiro serviço público. Depois você tem o Quebra-Bondes, em 1930, o Quebra-Quebra, em 1981, a Revolta do Buzu, em 2003. A luta pelo direito de se mover na cidade, você se sente parte dessa continuidade?

ET: Engraçado você me resgatou uma memória histórica e eu nunca tinha parado para pensar nisso. No sentido de fazer a cronologia. Já tinha pensado nesses fatos, mas nunca tinha pensado de que tudo que a gente faz é uma dissidência que vem de tão longe. Olha que bonito isso. Por mais que a gente talvez não se aproprie, porque eu não me apropriei. Sempre estudei como fatos históricos importantes, emblemáticos, mas eu nunca tinha parado, até esse momento, para pensar. E óbvio que não foi voluntário, mas eu acho que não deixa de ser porque a gente traz a historicidade dessas situações.

MT: Até porque não se resolve. É um conflito que não se resolve.

ET: Exato. Estamos sempre empurrando com a barriga. Essa é a grande questão. Para além da questão do deslocamento, a gente agora tem uma fome, um desejo, uma necessidade de querer se deslocar, não só pelo se deslocar, mas se deslocar por saber que: eu quero ir naquela praia, eu quero estar naquele teatro, eu quero estar naquele espaço e não quero voltar correndo como Cinderela, meia noite, pra pegar o buzu que é o último que vai passar naquele ponto. Eu quero ter um serviço decente ou pegar minha bicicleta e ter a segurança de pedalar a noite voltando pra casa, seja mulher ou não. Seja sozinha ou acompanhada. Não importa. É isso que a gente quer. A gente quer estar mais próximo e se apropriar desses espaços públicos. Essa é a questão. O nosso novo olhar é dignidade e respeito pelo serviço público e bem prestado. Os 20 centavos é além disso. É desfrutar a cidade, é olhar e dizer: eu quero parar aqui agora, sentar nessa praça e ficar de boa. Não importa o horário, uma hora da manhã. É inadmissível que as praças de Salvador durmam agora fechadas. E não só aqui, outros lugares do Brasil também. É um espaço público sendo privatizado de novo, um espaço que tinha que estar à disposição. Disponível para todas as pessoas. Para mim, não existe coisa mais escrota do que quando vejo que os caras fazem a obra, mobiliário urbano para sentar onde as pessoas não podem deitar.

MT: Isso começou aqui em São Paulo, com Serra, embaixo dos viadutos. São Paulo exporta tudo que é ruim. O Padre Júlio Lancelotti arrebentou tudo com a marreta.

ET: Ele está certíssimo. E você pensa: gente, que diabo de mundo é esse? Ao invés de sermos mais acolhedores, mais humanos, mais empáticos, a gente consegue ser mais excludente, preconceituoso. Se você me dissesse que há 15 anos nós iríamos passar por essa crise ideológica, eu iria rir da sua cara: “Imagina, a gente está avançando”. Tudo que vejo no noticiário é assustador atualmente.

MT: Na sua opinião, porque existe um protagonismo feminino e, claro, não é de hoje. Na história da bicicleta, a mulher já foi responsável pela democratização do modelo moderno, também tem a questão da roupa, da mudança de vestimentas, libertação do confinamento do lar…

ET: Eu acho que as mulheres estão cada vez mais entendendo seu papel na sociedade. Eu não acho que seja um mérito da mobilidade, mas é uma coisa geral de qualquer eixo, Psicologia, Direito, as mulheres tiveram conquistas importantes. Existe espaço para uma organização ter no estatuto paridade de gênero, isso é super importante. Quando você vai para um lugar e diz: se não tiver mulher nesta mesa eu não vou participar desse debate. Isso é muito importante. Eu acho que hoje em dia, além de estarmos preparadas, nós aprendemos a cobrar. Esse é um espaço caro e importante e acho que, quando você exige, você quer estar preparada pra dizer: estou aqui não porque uso saia e me chamo Érica. Estou porque eu mereço estar aqui. Não é só pra cumprir a cota, vai além disso.

MT: A última pergunta. O quão importante é a discussão da crise, emergência, mudança climática e se esse é um foco de atenção para você dentro do ativismo.

ET: É uma questão de sobrevivência enquanto humanos. Eu vi que na pandemia, uma das coisas mais importantes, era respirar. E fazer isso dentro de um aspecto de cidade e espaço urbano é cada vez mais penoso. Quando a gente para pra pensar que a maior parte da poluição vem dos veículos motores que emitem gases poluentes, e não só uma poluição atmosférica, mas sonora, de tudo, isso vai tendo vários desdobramentos. O primeiro impacto é a poluição atmosférica com danos ambientais e na saúde, mas tem outros desdobramentos. Eu acho que a gente chegou onde chegou porque o ser humano, de maneira geral, valorizou por muito tempo as máquinas. Precisamos valorizar o humano, a escala humana, parar de pensar no motor, na escala veículo e voltar a pensar na escala humana. Manter o contato visual, dar bom dia, boa tarde pra quem está passando do seu lado, quando eu estou pedalando, eu cumprimento todas as pessoas. Quando eu estou de bom humor eu cumprimento, quando não estou, eu cumprimento também. Eu consigo sentir o cheiro da minha cidade, eu respiro a cidade, sinto o cheiro e o conforto das árvores porque ali vai estar mais sombra, o ar mais fresco. Porque não voltar a ter esse acesso, o contato,se isso nos faz tão melhores com esse contato, essa convivência? Se a gente sempre precisa estar com alguém, porque não na caminhada, pedalando? Porque não olhar essa cidade com os próprios olhos e não numa situação de deslocamento a 40 km por hora na qual você não vai ter nenhuma noção do que é aquilo, se é pequeno, grande, se tem contorno? É uma velocidade que não é humana. Nossa velocidade máxima é 10 km por hora. Precisamos voltar para a escala humana.

MT: Quer falar algo mais?

ET: Tem uma coisa que não ficou registrado. Temos que ficar atentas que tudo é uma tríade bem amarrada. Os governos municipais, para além das questões das obras e do transporte, que virou um negócio, a gente tem a especulação imobiliária que é uma grande força motriz. Muito do que a gente vê, são os olhos sedentos dessa força. Eu sempre dizia, em 2014, na elaboração do PDDU: a gente precisa fortalecer o subúrbio ferroviário de Salvador porque quando eles terminarem de explorar tudo do lado da Paralela, eles vão voltar para cá, o lado mais bonito da cidade. E dito e certo. Isso está começando com o monotrilho, vai avançar com a história da ponte e se a gente não conseguir ter um governo que pelo menos desestabilize isso, essa ideia vai se transformar em realidade e vamos perder um dos cenários mais importantes pra gente. Participei de uma audiência pública sobre o BRT, e o IPHAN dizendo que a obra não terá impactos na paisagem do Dique (que tem tombamento de paisagem), daí pergunto, será mesmo? A especulação imobiliária tem um braço forte e opressor junto com outros setores.

MT: E um histórico de um século em Salvador que sempre foi golpeada pela especulação…

ET: E ela dita as regras. A gente não pode esquecer que o Centro Antigo tem sido muito cooptado por essa indústria, essa elite que manipula e usufrui do benefício. O povo é resistente. Salvador é uma cidade de resistência. Salvador resiliente, como a prefeitura gosta de dizer, já não sei. Resistente, com certeza, porque nas condições que várias pessoas transitam na cidade, eu vejo um povo resistente. Pedalar em Salvador é um ato de resistência. Não tenho dúvida. Falo de um lugar de privilégio, mas, mesmo assim, como ciclista, sei que diante de um automóvel sou invisibilizada e menosprezada.

Jamile Santana traz uma força consigo. Força ancestral, força coletiva. Nos conhecemos através de Érica Telles quando estávamos criando uma mesa para o Congresso da UFBA 2021. Desde então, Jamile tornou-se uma interlocutora. A cada conversa, um aprendizado. Ela já ensinou muitas mulheres a pedalar e desenvolve projetos na área da mobilidade. Mas quando falamos em mobilidade, falamos de uma esfera social que extrapola a ideia de simples locomoção. É que os modos de se mover estão diretamente relacionados com a construção do espaço público, ao direito à cidade e são essenciais na discussão sobre a questão climática. Nesta entrevista, Jamile fala sobre a infância em Pernambués, sobre os projetos desenvolvidos em Santo Amaro da Purificação e conta como começou sua trajetória no campo da mobilidade. Ela se inspira em vozes como a de Aílton Krenak e também faz sua parte para adiar o fim do mundo. Ouçam, Jamile!

Marcelo de Trói: Como começa sua atuação com a mobilidade?

Jamile Santana: Começou quando entrei no coletivo, até então de empreendedorismo, o La Frida Bike, em uma viagem pra São Paulo para o Fórum Nacional de Cultura. Tinha uma mesa falando sobre mobilidade e periferia com pessoas majoritariamente brancas e acadêmicas. Falavam de pessoas que pesquisam periferia, não no lugar de quem vive a periferia. Foram muitas falas deturpadas e o contexto do evento era de maioria branca. A partir desse incômodo e com essa mesa que era a única que poderia ter algum tipo de representatividade negra, eu me levantei e fiz uma fala. Eu mostrei essa relação de quem é uma mulher periférica e que acessou a bicicleta tardiamente. Eu aprendi a pedalar com 23 anos, meu irmão me ensinando debaixo de muita chacota e insensibilidade. Aprendi a pedalar nesse contexto. E enfim, nessa mesa, rolou todo esse conflito, a mesa acabou dentro dessa discussão e voltamos pra casa inquietas. Eu suscitei pra minha colega de coletivo de começarmos a ajudar mulheres a pedalar, muito inspirada também no Bike Anjo, um coletivo que ensina pessoas a pedalar no Brasil e tem um polo em Salvador. Só que pensamos nesse recorte racial e de gênero e, a partir disso, essa minha companheira de coletivo, que já tinha histórico com o Bike Anjo como voluntária, começou a ensinar. Eu, muito insegura, não sabia ainda, ao mesmo tempo que observava. Eu tentava ensinar e ia aprendendo. Depois eu me mudo pra Santo Amaro pra fazer minha graduação e nesse percurso comecei ensinar as mulheres aqui. Eu saia meia noite, na rua, pra poder pedalar, ver meu equilíbrio, delimitar um espaço no cantinho da pista, pra pedalar em linha reta. Pedalar e olhar pra trás e tentar manter meu equilíbrio. Eu começava a criar estratégias ali, aproveitando as ruas vazias à meia noite, quando não tinha fluxo de carro, pra poder no domingo ensinar as meninas, nesse mesmo lugar de insegurança, como exemplo vivo daquela possibilidade de ensinar e aprender. Retornava todo domingo com uma nova estratégia, de como elas poderiam perder o medo. Porque não é só o aprender a pedalar, são vários entraves que existem pra você trabalhar com mulheres de 50, 70 anos, que nunca pedalaram na vida. Você vai lidar não só com o fato de estar aprendendo tardiamente, mas as inseguranças que são colocadas, entraves sociais colocados contra a mulher o tempo todo, uma relação de pré determinação de gênero, limitações de arriscar e vivenciar novas experiências. De certa forma fui exemplo vivo do que era proposto como atividade e evolução desse lugar. É aí que a gente vai para um movimento revolucionário e onde começa minha história com a mobilidade. A partir dessa criação do “Preta, vem de Bike” e do movimento com todas essas mulheres pretas.

MT: Agora você tem um outro projeto, o Afrociclos. Como é?

JS: Nessa migração para cá, eu acabei me separando do coletivo que eu fazia parte e reconstitui um outro projeto de mobilidade com outras ramificações para a saúde, sustentabilidade, comunicação. Estou ativa em Santo Amaro com a Rede de Mobilização Coletiva Afrociclos, ou só Afrociclos, mas gosto de colocar o nome todo porque não é só uma pessoa, só Jamile, é toda uma rede mesmo, de pessoas que vêm e vão e que estão em ações, colaborando de diversas formas.

MT: E quantas pessoas hoje?

JS: Temos 14 pessoas, entre homens e mulheres, majoritariamente mulheres. Temos também pessoas trans.

MT: Na nossa última conversa, que foi a mesa no Congresso da UFBA, no início de 2021, eu havia enfatizado que como invenção moderna, a bicicleta, assim como o carro, era uma invenção muito localizada na branquitude e no universo masculino. Pra você, isso sempre foi evidente?

JS: Sim, principalmente em relação às evidências. Apesar da periferia sempre ter utilizado a bicicleta, a cidade não é constituída para esse modal de transporte, também é muito restrita aos homens, o que constatei na minha pesquisa. Desde a infância, em razão dessa determinação de gênero, mulheres brincam dentro do ambiente interno e homens no ambiente externo. Então, dentro do ambiente externo, esses meninos, por mais que sejam da periferia, que sejam negros, eles vão acessar, nem que seja um bicicleta que é pra rua inteira pedalar, eles vão acessar e aprender. Ao contrário das mulheres. Quando você vai pensar no contexto racial e de classe, população branca, homem, cisgênero, de classe média, você vê que ele tem condição de comprar bicicleta, ter a própria bicicleta. A maioria das crianças brancas têm sua própria bicicleta, aprendem na infância. Tem toda uma situação da zona de conforto e de privilégio que faz com que esse homens ocupem esse lugar da mobilidade ativa a partir da bicicleta. E quando a gente vê o contexto nacional de mobilidade, boa parte desses lugares estão ocupados por homens. A cidade é constituída para privilegiar uma classe média branca. E fica ainda mais demarcada, perceptível, quando esse lugar do transporte está favorecendo o transporte individual do homem branco. Ele ocupa esse lugar.

MT: Qual sua relação com o Centro Antigo de Salvador e como você enxerga essas questões na área?

JS: Eu nasci na periferia de Salvador, em Pernambués. Comecei a frequentar o Centro com meus 16 anos quando fui fazer o Ensino Médio. A partir disso,comecei a acessar o Centro para lazer e fui percebendo como o transporte público cerceava nossos passos. Tem o horário de pico, quando os ônibus levam a periferia para trabalhar nos centros e era muito isso que eu vivia. Minha mãe é uma mulher que já trabalhava nos Barris, então eu vejo o Centro como esse lugar onde estão centralizados recursos, como um grande espaço de exploração dos entes da periferia, onde se nega recursos para a periferia para centralizar na classe média. E as pessoas da periferia, majoritariamente negras, continuam subservientes a essa população branca hegemônica que ocupa o Centro.

MT: Ao mesmo tempo tem uma resistência negra no Centro. Isso também é visível.

JS: Sim, com certeza. E que inclusive são ameaçadas o tempo inteiro pelo processo de gentrificação, como temos agora a comunidade do Tororó que está ameaçada de expulsão para construção de um anexo do shopping ou alguma bobagem dessa, capitalista, desumana. Como a gente tem também a comunidade da Ladeira da Preguiça que já sofreu muita agressão da polícia, o prefeito ACM Neto queria tirar o povo dali. O próprio Pelourinho que a todo tempo está sendo vendido para o exterior, dos gringos que compram casa e fazem hostels, hotéis e ocupam esse lugar. E a periferia é o todo tempo violentada nesse Centro. Tem a comunidade da Gamboa que sofre até hoje diversas ameaças. Comunidades periféricas que resistem dentro do Centro Antigo e vivem ameaçadas pela gentrificação que só quer beneficiar a população eurodescendente desse país.

MT: Que diferenças nota entre essa mobilidade ativa no Recôncavo e em Salvador?

JS: Eu sinto que, em Salvador, a mobilidade ativa é sufocante. A cidade está sufocada porque estão querendo transformar Salvador numa grande São Paulo, acimentando, asfaltamento, viadutos, construções sem nem necessidade, com uma lógica carrocrata que reprime as possibilidades de mobilidade ativa. Caminhar na rua é mais difícil, tem a questão da segurança pública que não ajuda, iluminação, relação econômica do país que coloca as pessoas em estado de mais insegurança já que assaltos começam acontecer com mais frequência. Salvador está sendo sucumbida pela lógica carrocrata. Em Santo Amaro, respeita-se mais o ciclista, respeita-se mais o pedestre. Eu sinto que aqui tem mais ciclistas, mulheres que levam crianças para a escola de bicicleta. Várias mulheres têm a cadeirinha na bicicleta, tem padaria na bicicleta, empreendedorismo na bicicleta, tudo de forma muito orgânica. Serviço de delivery teve início da pandemia, mas não durou muito porque tem o mototáxi e a moto tem mais essa agilidade, apesar da bicicleta ser mais econômica. Tem os benefícios que a bicicleta tem em relação à saúde, mas falta um olhar. Falta política pública. Aqui não existe o olhar para a bicicleta como modal de transporte, apesar disso acontecer de maneira orgânica. Mas, estruturalmente, a cidade não é construída para a bicicleta e ela acaba reproduzindo toda a lógica de urbanização que vem das grandes metrópoles. É uma grande réplica. Começa na França, mas continua aqui de maneira colonial que é a lógica segregacionista que, por sua vez, é racista. É algo que vem sendo replicado, mas a mobilidade ativa aqui é mais forte e orgânica do que em Salvador. Andar de bike em Salvador é um ato político.

MT: Em relação a Afrociclos, vocês têm a intenção de conseguir estabelecer diálogo com o poder público? Influenciar políticas públicas?

JS: A gente tem essa intenção, porém estamos caminhando com nossas próprias pernas, queremos trazer exemplos de possibilidade. Porque não adianta a gente chegar lá, conversar, eles vão deturpar nossas ideias e colocar da forma que eles querem. Estamos construindo a partir de patrocínio, edital, de nossas próprias forças e ideias, possibilidades de uma comunidade exemplo. Estamos atuando na comunidade do Eldorado, uma comunidade do Movimento Sem Terra. Estamos buscando com um grupo de mulheres, onde temos mais diálogo, um grupo chamado Sementes do Eldorado, falar sobre política pública territorial e fazer a formação política para que a sociedade civil compreenda a necessidade de não aceitar tudo que é imposto. E como o Movimento Sem Terra já tem um projeto político que é extremamente progressista, de certa forma é um viés que estamos encontrando de maior diálogo para construir esse território modelo e tentar trazer isso para o poder público como real possibilidade de fazer transformação no planejamento e desenvolvimento urbano da cidade.

MT: Salvador, em especial, já foi palco de diversos conflitos e eu falo disso na tese. Os negros sempre são protagonistas dessas revoltas. Em que medida essas movimentações se ligam ao seu ativismo e o que você pensa como mobilidade.

JS: Com certeza tem muita ligação. São duas coisas que eu defendo, para além da mobilidade ativa, é a mobilidade coletiva. São duas formas de conseguir fazer uma cidade mais integrativa, menos poluente e que esteja a serviço de todos. Esses movimentos são revolucionários, trouxeram muitos benefícios, mas que são sucumbidos pelo capital que é esse lugar da carrocracia. Você só é alguém se tiver um carro. O status quo que se criou em cima do carro vai para além desse lugar de mobilidade, tem toda uma relação econômica, de “ter para ser” que é a lógica do capital. Nas brigas a favor do transporte público, das tarifas, todos esses movimentos depois da Revolta do Buzu foram quebrados, enfraquecidos. Justamente porque tem todo esse contexto de desenvolvimento urbano predatório, carrocrata, que influencia que o indivíduos só transitem pela cidade se ele tiver um carro. Se a gente continuasse lutando por transporte público, nós teríamos transporte de qualidade. Não ia ser necessário esse lugar de ter que ter um carro para ter que se locomover pela cidade. É onde o mercado aproveita pra vender, as concessionárias se aproveitam para vender o carro, comprar, ter. Vários trabalhos pedem carteira de motorista por mais que você nem use, por mais que não seja o foco do trabalho. Mas pedem exatamente nesse lugar. Temos uma mega estrutura trabalhando pra favorecer esse lugar, um diálogo público privado. Tudo depende de como a sociedade vai lidar com essas lutas. O fato da gente brigar menos e colocar as resoluções da vida na mobilidade reduzida ao carro tem feito cada vez menos as pessoas deixarem de lutar por transporte público. Tanto fez, tanto faz. Todo ano a gente sabe que vai aumentar a passagem, então vamos nos preparar para isso. Muita gente não anda de bicicleta porque já sabe: o motorista vai tirar uma fina, eu posso morrer, “não sei quem” morreu de bike, eu posso sofrer um acidente, sabe? O carro não respeita a bicicleta, então não vou pedalar. E daqui a pouco, a gente vai parar de andar na rua porque não tem calçada pra pedestre. Não tem calçada, a cidade está sendo construída para os carros e as calçadas ocupadas por estacionamento de carro. Os ônibus estão cada vez mais extintos das comunidades, o que fortalece mais o segregacionismo urbano. Eu não me aprofundei muito nos movimentos que você estudou e nem participei deles, mas minha irmã participou da Revolta do Buzu. Ele é ativista, filósofa, estuda Angela Davis, fala do racismo estrutural e institucional, ela se chama Itana Santana. Hoje ela não está ligada à mobilidade, mas querendo ou não, eu arrasto o bonde, ela está ligada nessa temática. Eu que ensinei minha irmã a pedalar. Hoje temos essa luta que é muito compartilhada, discutimos as possibilidades de adiar o fim do mundo, como diz o Krenak.

MT: O quão importante é a discussão sobre a crise, emergência e mudança climática. Isso está presente na rede Afrociclos?

JS: Sim, está completamente imbricado. Atuamos na área de sustentabilidade. Estamos ativando um projeto chamado Refloresta Favela que a gente faz um reflorestamento das periferias, pensando tanto na saúde, na soberania alimentar, plantando árvores frutíferas. Eu lembro que na minha infância em Pernambués, uma periferia rural pro contexto de 1992 e que ainda hoje é, e existem várias periferias rurais em Salvador, nós tínhamos uma grande extensão de mata. Hoje ela foi privatizada pra construção da pista Luís Eduardo Magalhães e destruíram boa parte da mata, desmataram pra construir essa pista de alta velocidade. Fizeram um muro quilométrico e deixaram toda a mata privada para o Exército. Eu lembro muito que, antes desse processo, minha infância toda foi ali, na mata, comendo fruta. Por mais que eu venha de uma condição sócio econômica de extrema pobreza e por mais que a gente não tivesse alimento em todas as refeições do dia em casa, a natureza nos proporcionava outras refeições. E tudo isso era de graça, estava ali para consumo nosso. Já que era uma mata extensa, quando chegava a época de verão, várias pessoas pegavam as frutas pra vender na feira. Ou seja, era um outro recurso que girava. Pensando em todo esse contexto e como vivenciei esse lugar da gentrificação, a gente vem aqui hoje com a Afrociclos, nesse lugar de fazer a Refloresta Favela, reflorestando as periferias com árvores frutíferas, pensando nesse lugar de soberania alimentar. Pensando nesse lugar da gente desenvolver uma lógica de desenvolvimento urbano sustentável, não predatório. A gente traz a discussão para o lugar dos rios, da poluição dos rios, do aterramento de rios pra construção de pistas, o que é um absurdo! Um grande retrocesso é a possibilidade dessa ponte Salvador – Itaparica. Espero que não aconteça e parece que já deu um chabu aí. Essa discussão sobre o clima é extremamente importante pras nossas lutas, pois estamos lutando contra o processo de globalização predatória, contra modais extremamente poluentes, lutando contra a lógica capitalista exploratória, contra o agronegócio. A gente atua junta com comunidades da agricultura familiar, quilombos, que trabalham nesse lugar de economia de subsistência que também estão na luta pela preservação dos rios, dos mares, dos mangues. Existem várias indústrias querendo se instalar no local. Ano passado, uma empresa queria se instalar em Santo Amaro para produzir produtos químicos. Foi uma luta. Aqui já é uma das cidades mais contaminadas com chumbo da América Latina por conta do desastre da Basam que era uma fábrica que tinha aqui. Essa discussão diante das condições climáticas do país, do mundo, é algo que vem junto com a gente. Nós tivemos um inverno completamente rígido e, pelo início da primavera, dá pra perceber que teremos um verão extremo. Todas as possibilidades que vamos criando, esse planejamento de construir comunidades modelos num lugar de urbanização e desenvolvimento urbano sustentável é exatamente pra mostrar, não só pra prefeitura, mostrar por mundo a necessidade de evoluirmos sem destruir. É possível.

MT: Isso é ecologia política pura. É o adiamento do fim do mundo de forma permanente. Quer falar algo pra encerrarmos essa entrevista?

JS: Eu costumo dizer que o futuro depende da nossa pressa. O presente é agora. Não precisa ter pressa pra construir movimentos megalomaníacos ou modelos de desenvolvimento que nos destroem. Se a gente seguir nessa lógica, mais rápido a gente acaba com o mundo. Pra adiar o fim do mundo, precisamos caminhar no passo de Tempo, no tempo de Tempo. A gente pode evoluir, sem destruir, de forma sustentável, digna, equânime, para que todos acessem recursos materiais, imateriais, intelectuais. Somos pessoas e temos direito de ter um bem viver.

Banner da mesa que aconteceu no dia 25/02/2021 durante o II Congresso Virtual da UFBA

Hoje foi um dia especial. Acordei cedo como de costume e as 7h30 já estava on line para uma mesa que coordenei no II Congresso Virtual da Universidade Federal da Bahia. Tomei um susto quando nosso reitor apareceu na sala para nós desejar sorte. É uma honra estar vinculado a essa Universidade. Viva a Universidade pública e gratuita, viva a ciência e viva o conhecimento. Eu pensei em criar esse debate porque ele tem relação direta com minha tese de doutorado que se chama “Corpo Dissidente, Mobilidade e Direito à Cidade” e sobre a qual já falei aqui no blog.

Por ser um tema multidisciplinar, por ter uma relação muito próxima com a construção da cidade, da urbanidade, do espaço público e do direito à cidade, hoje a mobilidade é um tema central para se pensar justiça social e acesso ao espaço urbano. As relações entre gênero, raça e mobilidade são profundas. Eu tenho encontrado dados relevantes na minha investigação do doutorado sobre esse tema. Historicamente, as mulheres sempre foram colocadas de lado no uso de artefatos móveis, tanto quando da criação da bicicleta, no século XIX, como também no uso do automóvel. E graças a luta pelo uso da bicicleta por mulheres, nós chegamos a esse modelo de bicicleta moderna, porque antes o artefato era muito restrito aos esportistas. O uso da bicicleta por mulheres significou uma revolução comportamental na vestimenta, no papel social das mulheres. Também temos outros exemplos dessas relações: na Arábia Saudita as mulheres só passaram a dirigir automóvel há 4 anos, aproximadamente. E quando a gente vai pra questão racial, nós temos muitos outros dados e pesquisas que apontam como esses artefatos sempre foram um privilégio não só de classe, mas também de raça, de pessoas brancas. Tem toda uma questão sobre o uso de aplicativo para entrega, usado majoritariamente por jovens negros, com trabalhos precários. E mesmo hoje nas cidades, no caso da bicicleta, embora todas e todos nós que somos ciclistas, cicloativistas e sofremos com a violência do trânsito, totalmente dominado pelos carros, a gente sabe que uma mulher numa bicicleta encontra muitas outras barreiras e é alvo de violência dirigida. Ao mesmo tempo, muitas mulheres têm sido fundamentais na luta por uma cidade democrática e acessível. As duas convidadas para a mesa de hoje são prova disso. Veja a mesa clicando no link: https://youtu.be/aGD3rqdc0Fo

As ruínas, históricas ou não, sempre me atraíram. Elas anunciam finais de mundos ao tempo em que também engendram outros.