Que agora, enquanto escrevo, escuto por acaso o hino nacional no álbum de “Farofa Carioca”
Hey Zé, Hey Joe, Hey Humberto, essa foi feita pra você mano, que sempre esteve consciente da morte. Aqui na vida também não está fácil. Uns juntando dinheiro, como só você soube juntar. Outros juntando inimigo, como só eu sei juntar. Outros ainda acreditando nos falsos amigos, como só eu e você somos campeões. Governador dos sertões, entre cobras e ladrões, eu e os meus sermões. Você, filho de Camões. Zé do Recife. Tirando o que tinha de ruim que só o capeta tem, era gente boa também. Comigo sempre foi um gentleman. Zé do Recife. Eu quero ver esse jagunço da alma sebosa, esse cú rasgado de uma mãe desgostosa, esse tarado de um cabrunco da chicugunha dos inferno que te pegou de doze cromada no sertão, eu quero ver esse bundão vir aqui no curtume onde eu não roubei um palmo de terra de ninguém. Que você não merecia mais do que nenhum de nós, morrer assim. Que eu mesmo já te quis matar um milhão de vezes, mas e daí também quis matar o Lika e, no entanto ele é o ser-humano que mais amo nessa vida. Você, o que mais me ensinou. Zé do Recife, mocinho e vilão, que nesse mundo de amarguras e de sexo e desejo de poder, neste monstro de energia não existe nenhum santo e que aqueles que se fingem de santo são os piores e mais perigosos. Zé do Recife, nenhuma lágrima eu derramo por ti porque bandido não chora, bandido curte um som, toma uma e fuma um. Em tua intenção. Zé do Recife cabra homem do papo reto, cabra macho do papo bom. Que essa fotografia de seu derradeiro momento de pavor, e o seu último suspiro de horror se dissipe e se transforme logo em luz e amor e onde quer que teu corpo de surfista vá apodrecer, que ele tenha um tratamento minimamente humano. Que jagunço que eu conheço tem crença ou religião e não mata por ódio, mas por dinheiro. Que tenha deixado você fechar teus olhinhos de criança antes de explodir a tua cabeça, que tenha coberto tua carcaça antes de chegarem os urubus no fim da escuridão assustadora do sertão. Que esse que te pegou com certeza é profissional e ganhou uma boa grana pra isso. Zé do Recife, se eu sou um no meio daquela centena de vagabundos de Pau Amarelo eu viro gatinho daqui em diante, porque sumiu quem inspirava, quem protegia e quem sabia rir da desgraça. E, antes que eu me esqueça, não existe deus, não existe diabo, nem céu e nem inferno. Hoje eu estou livre de toda essa palhaçada. Um monte de analfabetos querendo me matar, mas eu não matei ninguém. Você não me ensinou a matar. Eu faltei nessa aula e você abonou a minha falta. Poxa Zé, eu tinha planos de ir te ver de novo e te levar na minha festa de casamento onde nós íamos contratar os Racionais pra cantar e tomaríamos ácido e contruiríamos prédios e marinas e colocaríamos o povaréu pra morar e navegar de novo, de novo navegar. Poxa Zé, você vacilou, me disseram que até joalheria você roubou. Nesse caso, tanta revolta, não sei bem o que rolou. Que só pode ter sido tua mulher que cansou e que teus filhos ela levou. Não vejo outro motivo pra tú estar largado nessa de assalto a casa de coronel, não Zé, parece que eu aprendi com você e você não quis aprender comigo. Porque Coronel não se mata, se espera cair de podre. Coronel não se mata, se cagueta pra federal. Coronel não se mata, se coopta e se faz pensar que é alguma bosta. Coronel de bosta. Mas tú fez o teu papel. De Lampião a Marighela, você não esperou pelo céu. Viveu e matou e ajudou muita gente, desgraçou a vida de muita outra gente. Mas a maioria hoje te lembra como herói. Zé do Recife descanse em paz.